ANTES DELA DORMIR
 

OUVIR

Porque eu gostava de cantar para as meninas...
E à minha filha, antes dela dormir, eu gostava de cantar, assim...

Ita Cabi (n. 1997), Bissau, Guiné Bissau (em Idanha-a-Nova desde 2019)

 

SONS PERDIDOS
Filipe Faria

Dizem que Guglielmo Marconi (1874-1937), físico e inventor italiano, padrinho da tecnologia rádio, acreditava que o som não morre. Sonhava ouvir os sons perdidos, tocar nessas frequências eternas. 
Podíamos ouvir tudo. Ouvir a primeira inspiração dos nossos filhos e dos nossos pais. Ouvir o primeiro grito da Humanidade, cada sermão, conselho sábio ou riso de todas as gerações. Ouvir o som grave da primeira erupção ou o canto agudo daquela ave que escapou para longe. Todos nós podíamos ouvir tudo. Ouvir tudo, para sempre. 
Depois de produzido, o som não morria mas perdia poder, enfraquecia. Estas ondas sonoras, fracas, sem destino preciso, permaneciam eternamente a flutuar. Qualquer som podia, em teoria, ser recuperado. Ouvido pela primeira ou pela enésima vez. Qualquer som de qualquer  lugar ou tempo passado. O primeiro e o último. Um som perdido podia ser ouvido, novamente, com o equipamento certo. Um equipamento poderoso. Um que conseguisse ouvir e escolher. Um por inventar.
Todos os sons são sons perdidos… ondas que flutuam, independentes de outras vontades, até que alguém as consiga sentir ou sem destinatário. Persistentes. Frágeis. Mudas. Flutuações brutais ou discretas. Gritos ou sussurros. Ruídos. Vozes. Com todas as histórias do mundo.
Ainda não foi possível inventar aquele equipamento poderoso com que poderíamos ouvir todos os sons perdidos, mas inventámos a forma de os guardar. Hoje, conseguimos ouvir o dia de ontem, desta ou de outra geografia. Mais ou menos secreto. Enchemos o planeta de sons perdidos. Sons que, dependendo da nossa vontade, podem voltar a ser produzidos.
A construção de um Museu dos Sons Perdidos parte daqui... da tentativa de perpetuar as ondas das memórias pessoais e colectivas de uma comunidade... e o seu potencial criativo. Fundador. Reconfortante. Assustador.  
A paisagem sonora de todos e de cada um, construída pelas biofonias, geofonias e antropofonias de um território… o mundo silencioso a partir do qual nasceu.
E a imagem, um veículo.


LÁ FORA
Luís Pedro Cabral

A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem a forma
o meu resplendor.

Um diminutivo berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria - na metáfora -
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.

A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,

um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim.

A Magnólia - Luiza Neto Jorge
Rosa do Mundo (Assírio & Alvim - 2001)

Lá fora, a vida, na sua autofagia incessante, em estado perpétuo de absoluta relatividade. Exércitos de beleza flutuam, como se fossem pétalas de solidão, entidades apotropaicas, que nos resgatam da sua própria desumanização. Não há ausência. Na imensidão se encontra o detalhe, no detalhe se encontra a vastidão, onde o óbvio se escapa como uma aia à procura da escuridão, por entre um imenso território de dádivas, ao som de um silêncio psicadélico, numa paisagem dissidente onde a matéria se torna memória e o fim recomeça.
Lá fora, este mundo selfie, globalizado até às costuras, está inundado de píxeis, sobrelotado de imagens em desenquadramento e temporalidade contrafeita. A beleza da fotografia, a sua voz, a sua frequência, não é arte final, mas o espaço de pensamento que a precede e a sucede. Há uma distância, um vagar analógico, narrativa. É maravilhoso observar a gente que se vê na ausência, assim como na sua voz se cruzam tantos mundos, tantos territórios, em todos os seus timbres.
Lá fora, a vida no seu ventre, no seu esplendor incessante, em estado de perpétua inocência, quase neófito. No som, na sua multiculturalidade, há uma unidade, uma identidade feita de muitas. Este projecto magnífico, a criação de um Museu dos Sons Perdidos, tem como ponto de partida o ponto de chegada. Parte da individualidade para a construção de uma paisagem sonora, partindo desta para a sua transposição visual, territorial. Requer delicadeza, profundidade, sensibilidade fina, de flor de pele. Mais ainda quando a voz, feita de tantas vozes, se expressa e se demonstra pelos filtros próprios da mulher, capturando todos os meridianos da palavra no som, nas suas amplitudes, nas suas polifonias. E uma determinada melancolia que às vezes parece vinda da matéria dos sonhos e noutras se torna tão real quanto a sua realidade.
Lá fora, as confluências de terra e de céu. Tudo é vida, numa explosão quieta, retalhos aprisionados brevemente num tempo e num espaço sem quietude possível. Na paisagem, desfilam gerações, vidas inteiras, mundos distintos numa unidade de memória colectiva. É como se estas memórias se decantassem no próprio território, presentes na ausência como um som infinito e irrepetível na museologia da alma.
Lá fora, os elementos. A flor, a água, a pedra, os ramos, a raiz, os rastos, a pegada que a Humanidade deixa ao passar. É a presença que a deixa assim e a ausência que a torna infinitamente bela. Talvez não seja essa a natureza das coisas, mas é essa a natureza do ser.
Lá fora, os esquissos perdidos da paisagem humana, adaptando-se ao seu lugar, adaptando-o. As pessoas transformadas em paisagem, a paisagem transformada nas pessoas, forjando lentamente a sua própria oralidade, a sua identidade. Captá-la não é fácil, mas é absolutamente maravilhosa a sua revelação.
Lá fora, todos os dias a vida nos ensina que o amanhã é a ilusão mais antiga da Humanidade. Não há amanhã. Apenas dia, em todas as suas sonoridades. Paisagem. É isso que somos. Tantas vezes perdidos na tempestade. A procurar, a procurar, a procurar. Até encontrar o nosso definitivo berço.


LEMBRAR
Paulo Longo

Do movimento da vida, morte e Renascimento.
Reservar-nos-á o que semearmos e do que os nossos corações forem capazes.
Ana Sofia Nunes [Dez, 2018]

Lembrar.
Lembrar é um acto poderoso, fundamental. Acordamos com ele todos os dias. E todos os dias com ele nos deixamos dormir. Nem os sonhos lhe escapam, tantas e tantas vezes. Sem que disso tenhamos consciência por vezes, a lembrança guia as nossas acções, influencia os nossos gestos, desenha as paisagens por onde nos movemos na incessante busca de sentido que é a vida.
Estas linhas não deveriam ser escritas por mim. Não era suposto. Forças além da nossa vontade, porém, assim o determinaram. Coube à lembrança, o dever de guardar a memória, feliz, daquela com quem tivemos o privilégio de partilhar o esboço desta etapa, metamorfose fruto da vertigem criadora do seu pensamento. Ana Sofia Nunes.
Impasse foi o ponto de partida. É a verdade e não há volta a dar. Quando a Sofia tomou para si o desafio de dar continuidade ao Projecto dos Mediadores Municipais e Interculturais em finais de 2020, o cenário era esse. Não por muito tempo. Com a energia e espírito de missão que todos lhe conhecíamos, a situação evoluiu rapidamente para uma reprogramação que veio a traduzir-se no conjunto de acções e conteúdos a que é dado corpo neste momento em que todo o processo chega ao seu término.
À nossa responsabilidade ficou um legado, no qual todos se empenharam para estar à altura de dar a continuidade sonhada pela Sofia. Uma continuidade que não se pode esgotar no mero cumprimento deste ou aquele parâmetro, mas que se exige plástica e dinâmica, capaz de se adaptar às necessidades de resposta implicadas em cada situação, em cada cenário.
Esta foi a matéria de cada discussão, de cada análise, de todas as abordagens feitas no contexto deste, como de todos os outros trabalhos em que nos vimos envolvidos com a Sofia. A não conformidade pura e simples com uma determinação que, num relance, verificamos estar aquém do que a realidade, na verdade, exige.
Por isso, tão grande era o desafio de trabalhar em equipa com a Sofia, e, também por isso, tão exigente é a herança dessa noite de Maio de 2021. Depois dela dormir.


LIVRO


TEASER

Antes dela dormir

Ensaio sobre a Paisagem
de Filipe Faria

Paisagem sonora, intercultural,
no feminino, sobre paisagem visual

Um projecto original de
Filipe Faria
\Arte das Musas

A partir de
Idanha-a-Nova

Paisagem Sonora e Fotografia
Filipe Faria

Edição
Arte das Musas

Colecção
Museu dos Sons Perdidos

Em parceria com
O Homem ONG

Prefácios
Luís Pedro Cabral

Paulo Longo

Design e Paginação
Filipe Faria

Com as vozes de
Inês Tonelo
Ita Cabi
Licínia Gaspar
Ramandeep Kaur
Carla Alexandra
Inês Évora
Marisa Ramos
Ana Paula Parente
Vera Serra

Estrutura Financiada por
Direcção-Geral das Artes
\Ministério da Cultura

Em parceria com
Município de Idanha-a-Nova
\UNESCO Creative City of Music

Integrado no Projecto
Mediadores Municipais e Interculturais

Um projecto
Câmara Municipal de
Idanha-a-Nova

Em parceria com
CMCD - Centro Municipal
de Cultura e Desenvolvimento

Coordenação
Marta Castanheira

Financiamento
Programa Operacional
Temático de Inclusão Social
e Emprego (PO ISE)

Mediadores
Guabi David
Marisa Ramos
Samuel Romão
Vera Serra

1ª Edição Idanha-a-Nova 2022
Impressão Printer
ISBN 978-989-95983-7-9
Depósito Legal 500207/22
Tiragem 1000 exemplares

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