OUVIR
A minha vida foi essa toda
Maria Inês dos Santos Tonelo (n.1937), Rosmaninhal
ENSAIO
Filipe Faria
Ensaio: A vida toda aqui dentro. Tempo a passar, a chegar até aqui.A continuar. Exercício: Esta voz é tudo o que é, tudo o que somos. Base. Chão. Esta é a sua voz. Esta voz é minha, agora. Chão. Raiz. Tronco. Experiência: A voz deste lugar, Rosmaninhal, com tudo lá dentro. Todos os dias, todas as horas. Todas as alvoradas. Todos os ocasos. Todos os rosmaninhos. A voz desta mulher, Inês Tonelo, nascida, aqui, em 1937. Esboço: Sobre o poder das histórias, da língua falada, da apropriação, da corruptela. Da verdade. Da invenção. Do lugar. Do ser humano.
Prova: Som sobre fotografia. Invisível sobre sais de prata. Ensaio: A voz não tem corpo nem cara.
O corpo (ou a paisagem) tem esta voz.
Tempo a passar.
E a paisagem, um veículo.
Dizem que Guglielmo Marconi (1874-1937), físico e inventor italiano, padrinho da tecnologia rádio, acreditava que o som não morre. Sonhava ouvir os sons perdidos, tocar nessas frequências eternas.
Podíamos ouvir tudo. Ouvir a primeira inspiração dos nossos filhos e dos nossos pais. Ouvir o primeiro grito da Humanidade, cada sermão, conselho sábio ou riso de todas as gerações. Ouvir o som grave da primeira erupção ou o canto agudo daquela ave que escapou para longe. Todos nós podíamos ouvir tudo. Ouvir tudo, para sempre.
Depois de produzido, o som não morria mas perdia poder, enfraquecia. Estas ondas sonoras, fracas, sem destino preciso, permaneciam eternamente a flutuar. Qualquer som podia, em teoria, ser recuperado. Ouvido pela primeira ou pela enésima vez. Qualquer som de qualquer lugar ou tempo passado. O primeiro e o último. Um som perdido podia ser ouvido, novamente, com o equipamento certo. Um equipamento poderoso. Um que conseguisse ouvir e escolher. Um por inventar.
Todos os sons são sons perdidos… ondas que flutuam, independentes de outras vontades, até que alguém as consiga sentir ou sem destinatário. Persistentes. Frágeis. Mudas. Flutuações brutais ou discretas. Gritos ou sussurros. Ruídos. Vozes. Com todas as histórias do mundo.
Ainda não foi possível inventar aquele equipamento poderoso com que poderíamos ouvir todos os sons perdidos, mas inventámos a forma de os guardar. Hoje, conseguimos ouvir o dia de ontem, desta ou de outra geografia. Mais ou menos secreto. Enchemos o planeta de sons perdidos. Sons que, dependendo da nossa vontade, podem voltar a ser produzidos.
A construção de um Museu dos Sons Perdidos parte daqui... da tentativa de perpetuar as ondas das memórias pessoais e colectivas de uma comunidade... e o seu potencial criativo. Fundador. Reconfortante. Assustador.
A paisagem sonora de todos e de cada um, construída pelas biofonias, geofonias e antropofonias de um território… o mundo silencioso a partir do qual nasceu.
E a imagem, um veículo.
O processo da memória
Luís Pedro Cabral
O amor, pela sua natureza pronominal recíproca, é provavelmente o mais sobrestimado da nossa carta sentimental, talvez porque a romantização derive desse mesmo conceito, que às vezes mais parece um preconceito em carne viva e, noutras, a mais absoluta, a mais imperfeita das perfeições, a beleza de todas as belezas concentradas num ecossistema cognitivo, onde até o divergente converge. Codificação. Armazenamento. Evocação. Diagramas visuais que flutuam no espaço e no tempo em universos de oralidade, dádivas de som, onde a vida percorre todas as vidas, sem sair do seu lugar.
De todos os envultamentos antropológicos, o processo da memória é o que mais se aproxima da imortalidade, a distopia de estimação do ser humano. De todas as constelações de amores, nas suas infinitas decantações, o amor à terra é o mais transcendente, como uma sizígia divina, em perpétuo estado seminal.
Maria Inês dos Santos Tonelo nasceu em 1937, no Rosmaninhal. Toda a vida viveu no campo, como os seus pais e os pais dos seus. A sua voz pungente é a voz de todas as vozes, a expressão profunda de território. Sente-se o tempo, um outro tempo, transversal, o tempo da identidade, neste lugar que se fez seu, como ela se fez deste.
As histórias que conta com a sabedoria que esse tempo lhe concedeu, em mil desdobramentos de linguagem, como organismos mutantes que brotam da corruptela e se instalam no léxico, saltitam entre dimensões, como as lágrimas, as reminiscências, as letras nas canções. Mundos a viver dentro de outros, habitados por uma intemporalidade comum.
É como se na sua voz se sentisse o rasto imperceptível que os dias deixam ao passar, nos seus nasceres, nos seus poentes, em todos os atómos de natureza, o sensorial e o primordial numa dança psicadélica de crocodilo, fazendo das rupturas harmonias, desenhando arquipélagos de solidão em tantos traços de gente. Pura energia, de céu, de chão, de ciclo, maravilhosamente territorial, o processo da memória.
Não há quem não tenha neste mundo um lugar que lhe pertença, como o sal pertence ao mar, as estrelas ao firmamento, a raiz às entranhas da terra, o fim ao que começa. Parece tão pequenino esse lugar, menos do que ínfimo no mapa da Humanidade. Uma galáxia tão distante que quase se faz passar por inexistência, como se lá guardasse o segredo da vida. Pouco mais parece do que nada, sendo maior do que tudo.
É um lugar mágico, o território da memória, um sortilégio onde a solidão não é possível e o tempo, no seu incrível feitiço de paralaxe estacionária, parece não passar. Dizem que é o lugar que nos pertence, mas não é assim. Somos nós que pertencemos a esse lugar. Somos nós, o território, os vales, os rios, as rochas, a raia, o sedimento, as múltiplas camadas de matéria finita, justapostas num colectivo imemorial de vasos comunicantes, como se fossem êxodos sedentários em dialectos nómadas, onde a vida revive outra e outra vez, na linguagem, nos sons próprios que transmitem os lugares quando estão onde pertencem. Como palavras que no tempo atravessam o seu ponto final.
A minha vida foi essa toda
Ensaio sobre a Paisagem
de Filipe Faria
Paisagem sonora sobre paisagem
Maria Inês dos Santos Tonelo (n.1937)
Rosmaninhal Idanha-a-Nova
Som sobre fotografia
Um projecto de
Filipe Faria
A partir de
Idanha-a-Nova
Paisagem Sonora e Fotografia
Filipe Faria
Edição
Arte das Musas
Colecção
Museu dos Sons Perdidos
Em parceria com
O Homem ONG
Prefácios
Luís Pedro Cabral
Design e Paginação
Filipe Faria
Transcrição
Luís Sequeira
Fotografado em
Rosmaninhal (Idanha-a-Nova) 2024
Um projecto
Arte das Musas
Em parceria com
Município de Idanha-a-Nova
\UNESCO Creative City of Music
Com o apoio
Ministério da Cultura
\Direção-Geral das Artes
1ª Edição Idanha-a-Nova 2024
Impressão Gráfica Maiadouro
ISBN 978-989-35083-7-4
Depósito Legal 538013/24
Tiragem 500 exemplares
© Arte das Musas 2024
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