PALHETA - © FILIPE FARIA ARTE DAS MUSAS 2018
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PALHETA - © FILIPE FARIA ARTE DAS MUSAS 2018
PALHETA - © FILIPE FARIA ARTE DAS MUSAS 2018
 
 

NO PRINCÍPIO ERA O SOM
FILIPE FARIA

O instrumentário musical popular português que hoje conhecemos é o resultado da contaminação inevitável da viagem, do gosto, da experiência ou da necessidade. Deste corpus vivo destacam-se aqueles instrumentos que representam a tradição de uma comunidade ou região, encarados como elementos identitários fundamentais. A par deste existe um outro, vivido, no passado, com igual fulgor e proximidade, mais ou menos presente na experiência dos dias de hoje, mais ou menos comum a todo o território e para além dele, que é parte essencial da nossa memória sonora colectiva.

Em 2012 entrei em contacto com um instrumento de origem popular da região de Idanha-a--Nova, a palheta. O instrumento chama imediatamente a atenção pelo seu desenho invulgar, com recortes entalhados para os dedos – uma característica essencialmente estética e que o diferencia da grande maioria dos instrumentos (populares e eruditos) de palheta dupla – e pela forma característica da campânula – também ela muito diferente do ponteiro da gaita, da dulçaina (um instrumento popular espanhol), etc...

Os instrumentos que sobrevivem no Museu Nacional de Etnologia ou no Museu da Música Portuguesa – Casa Verdades de Faria, entre outros, são da autoria de José dos Reis (1911 -1996) – ou “Ti Zé da Gaita”, como era conhecido –, um pastor de Monsanto que os construía recorrendo a métodos artesanais, tocava para si próprio ou para a sua comunidade em momentos festivos e vendia (ou oferecia) em festas e romarias, pontualmente, a viajantes e interessados. Este foi o instrumento que nos chegou e é esta a sua autoria... e foi este o instrumento que vi e ouvi em Idanha pela primeira vez.

A identidade musical de Idanha-a-Nova orbita essencialmente em torno do adufe, um instrumento, também ele, peculiar. Este pandeiro quadrado é merecidamente o grande ícone musical da região mas a identidade musical do território não se resume a ele. A tradição musical desta região tem contornos muito especiais tanto ao nível performativo como do instrumentário e dela têm surgido tanto projectos de salvaguarda como de criação a partir da tradição e do património imaterial. Foi esta última característica que a UNESCO valorizou ao receber Idanha no seio das Cidades Criativas da Música em 2015 e é neste contexto que enquadramos o nosso projecto.

Do primeiro contacto ficou a semente da ideia de que a palheta de José dos Reis escondia um potencial muito interessante de afirmação da região e da sua identidade mas, também, um potencial intrinsecamente musical. A ideia de que era possível, a partir dele, criar algo novo, e levá-lo para outras dimensões.

Foi em 2016 que desafiei o Pedro Castro, músico especializado em Música Antiga – flauta de bisel, oboé barroco, etc. – parceiro e cúmplice de tantos anos em vários contextos artísticos – para um projecto criativo à volta deste instrumento. Para além do seu conhecimento profundo do universo dos instrumentos de palheta dupla, como investigador e como músico, sabia que vinha de uma experiência muito interessante de realização de uma réplica de um importante oboé barroco existente no Museu Nacional da Música, construído originalmente por J. Eichentopf (1678-1769), que sabemos ter trabalhado para músicos que realizaram grande parte das Cantatas de J. S. Bach (1685-1750), repertório dourado deste instrumento. A réplica Eichentopf foi desenvolvida por Pedro Castro, com muito sucesso, em parceria com os mestres construtores Mário Estanislau e Vítor Félix. 

Nas primeiras reuniões do novo projecto decidimos potenciar a experiência desse trabalho de parceria e desafiámos o Mário Estanislau e o Vítor Félix para esta nova aventura. Só mais tarde soubemos que já tinham trabalhado o instrumento original de José dos Reis, em 2004, acabando por desenvolver uma versão sua e actualizada do instrumento de 5 furos. A equipa estava encontrada.

Partíamos, então, do instrumento de José dos Reis para propor uma reinterpretação moderna – passando de 5 para 8 buracos, crescendo em extensão (agora cromática), crescendo ligeiramente em comprimento e trabalhando a sua construção e o voicing (ajuste tímbrico e de afinação) em pormenor tendo o cuidado de manter as suas assinaturas estética e tímbrica – alimentando o potencial de inclusão deste “novo” instrumento no instrumentário da Música Antiga e da Música do Mundo.

O projecto começava a dar, finalmente, os primeiros passos e, durante um ano, trabalhámos na construção de uma série de protótipos até chegar a um instrumento que cumpria o nosso próprio desafio.

Sendo um desafio iminentemente criativo – e menos etnográfico e de salvaguarda patrimonial – este parte assumidamente da tradição e da memória colectiva e regional de Idanha-a-Nova. Como tal, esta era uma oportunidade de actualizar o estado do conhecimento sobre o instrumento e de convidar o etnomusicólogo João Soeiro de Carvalho do Instituto de Etnomusicologia - Centro de Estudos em Música e Dança (INET-md/FCSH/UNL) a fazer parte do projecto escrevendo um pequeno texto que olhasse a sua história e idiossincrasias.

A par do desenvolvimento e da construção de um novo instrumento inspirado na palheta original de José dos Reis nasce este pequeno livro (um companion book) que auxilia na interpretação de todo o projecto e fixa, em papel, esta aventura. O livro é acompanhado de um filme documental (disponível online) do processo de nas-cimento do som melódico a partir “do ramo de uma árvore” (in Palheta: A música no tempo dos pastores?, João Soeiro de Carvalho, 2018), processo tão mágico como desconhecido do grande público. Acredito na validade estética autónoma do processo de construção, desta magia que parece apenas tirar o que está a mais. O filme procura afirmar esta validade. 

O projecto só estaria completo se fosse possível ouvir e tocar este “novo” instrumento. Daí surge a ideia de um repositório vivo de registos de música e vídeo com este instrumento nos mais diferentes contextos bem como uma proposta de digitação do “novo” instrumento, a palheta de 8 furos, com a assinatura de Pedro Castro, a par de algumas sugestões pedagógicas que podem ser encontradas no final deste pequeno livro.

Termino agradecendo ao Presidente da Câmara Municipal de Idanha-a-Nova, Armindo Jacinto, pela disponibilidade e interesse com que acolheu este projecto, a Paulo Longo e a Pedro Castro pela profunda cumplicidade, e a Mário Estanislau, Vítor Félix e João Soeiro de Carvalho pela generosidade com que viveram esta ideia de recriar o nascimento do som melódico a partir “do ramo de uma árvore”.

 

IN THE BEGINNING WAS THE SOUND
FILIPE FARIA

The instruments of Portuguese folk music we know today are inevitably the cumulative result of travel, taste, experience and necessity. The instruments which stand out among this living corpus are those which represent the tradition of a particular community or region as fundamental elements of their identity. Alongside this living set of instruments exists another which shone with equal brilliance and significance in the past; a body of instruments that remain more or less present today throughout their territory and beyond and which remain an essential part of our collective aural memory.

In 2012, I came across a folk instrument originating from the region of Idanha-a-Nova, the palheta. The instrument is immediately noteworthy for its unusual design of flat carved finger-holes – an essentially aesthetic feature that sets it apart from the vast majority of double-reed folk instruments – and for its characteristic bell shape, which differentiates it from the bagpipe chanter, the dulzaina (a Spanish folk instrument) and others.

The palhetas held in the National Museum of Ethnology and the Museum of Portuguese Music - Casa Verdades de Faria (among other institutions) were made by José dos Reis (a.k.a. ‘Ti Zé da Gaita’, 1911-1996), a shepherd from Monsanto who built the instruments according to his own artisanal methods, played them for himself and his community during festivities, and sold (or gave away) the instruments to travellers and other interested parties during celebrations and pilgrimages. This was the creator of the instrument which has been passed down to us today... and this is the instrument I saw and heard in Idanha for the first time.

While the musical identity of Idanha-a-Nova revolves essentially around another unique local instrument, the adufe, a square frame drum which is deservedly the great musical icon of the region, the musical identity of the territory does not end there. The region’s musical tradition is blessed with special characteristics in terms of both performance and instruments, giving rise to projects of preservation and creation based on tradition and intangible heritage.

In 2015, this heritage was recognised by UNESCO, with the induction of Idanha into the Creative Cities Network for music, and our project was developed within this context.

My first contact with the palheta of José dos Reis planted the seed for a project which I believed held not only great musical potential, but also potential to promote the region and its identity. It was an idea to take the instrument to another dimension and create something new.

In 2016, I challenged Pedro Castro – a musician specialising in Early Music and instruments such as the recorder and the baroque oboe and a partner and accomplice in several artistic contexts over many years – to develop a creative project around this instrument. In addition to his deep knowledge of double-reed instruments as a researcher and musician, I knew he had recently been involved in a fascinating project to create a replica of a baroque oboe held at the National Museum of Music and originally constructed by J. Eichentopf (1678-1769), who is known to have worked for musicians who performed many of the cantatas of JS Bach (1685-1750), the instrument’s signature repertoire. Eichentopf’s replica was developed with great success by Pedro Castro in partnership with master instrument builders Mário Estanislau and Vítor Félix. 

In the initial meetings for the new project, we decided to further develop the replica partnership experience and invite Mário Estanislau and Vítor Félix to join us in this new adventure. Only later did we realise that they had already worked on the original José dos Reis instrument in 2004, developing an up-to-date version of the 5-hole palheta. Thus, the team was formed.

Using the instrument of José dos Reis as a starting point, we proposed a modern version with 8 holes. This gave the instrument a chromatic capacity and a slightly extended length while also enhancing its construction and voicing (expanding its potential range of timbres and tunings). We thus took care to maintain the instrument’s characteristic aesthetic and timbre while increasing its potential for use in Early and World Music.

The project was finally under way and for a year we worked on the construction of a series of prototypes before coming up with an instrument that lived up to all aspects of our challenge

With less priority given to elements of ethnographic interest and heritage preservation than to purely creative concerns, this challenge was based on the tradition and collective and regional memory of Idanha-a-Nova. As such, this was an opportunity to update the level of knowledge about the instrument and to invite the ethnomusicologist João Soeiro de Carvalho from the Institute of Ethnomusicology - Centre for Studies in Music and Dance (INET-md/ FCSH/UNL) to contribute to the project by writing a short text examining its history and particularities.

Along with the development and construction of a new instrument inspired by José dos Reis’ original palheta, the idea was born for this small companion book to accompany the project and set the adventure down on paper. The book is accompanied by a documentary film (available online), which looks at the process of creating melodic sound from ‘the branch of a tree’ (in Palheta: A música no tempo dos pastores? [The palheta: music from the age of the shepherds?], by João Soeiro de Carvalho, 2018), a process both magical and mysterious to the general public. I am a believer in the autonomous aesthetic power of the construction process, in the magic of stripping away everything unnecessary, and the film seeks to affirm this belief. 

This project would only be complete with an opportunity to hear and play this ‘new’ instrument. Hence the idea of creating a living repository of music and videos featuring this instrument in different contexts and of Pedro Castro’s development of a system of fingering for the ‘new’ 8-hole palheta for pedagogical purposes, which can be found at the end of this little book alongside a few other tips for learners.

I close by thanking the Mayor of Idanha-a-Nova, Armindo Jacinto, for the availability and interest with which he welcomed this project; Paulo Longo and Pedro Castro for their commitment to the project; and Mário Estanislau, Vítor Félix and João Soeiro de Carvalho for the generosity with which they contributed to this project to re-create the birth of melodic sound from ‘the branch of a tree’ .